quarta-feira, 30 de junho de 2010

Para saborear.....JOSÉ SARAMAGO Discurso na Academia Sueca receber o Prêmio Nobel de Literatura)


Foto: Cedoc
O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida
não sabia ler nem escrever. As quatro da madrugada, quando a


promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da

enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de
cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez
os meus avós maternos, da pequena criação de porcos que, depois do
desmame, eram vendidos aos vizinhos da aldeia. Azinhaga de seu nome, na

província do Ribatejo.
Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram
analfabetos um e outro. No Inverno, quando o frio da noite apertava ao

ponto de a água dos cântaros gelar dentro da casa, iam buscar às
pocilgas os bácoros mais débeis e levavam-nos para a sua cama. Debaixo

das mantas grosseiras, o calor dos humanos livrava os animaizinhos do
enregelamento e salvava-os de uma morte certa. Ainda que fossem gente de
bom caráter, não era por primores de alma compassiva que os dois velhos
assim procediam: o que os preocupava, sem sentimentalismos nem
retóricas, era proteger o seu ganha-pão, com a naturalidade de quem,
para manter a vida, não aprendeu a pensar mais do que o indispensável.












Ajudei muitas vezes este meu avô Jerónimo nas suas andanças de
pastor, cavei muitas vezes a terra do quintal anexo à casa e cortei
lenha para o lume, muitas vezes, dando voltas e voltas à grande roda de
ferro que acionava a bomba, fiz subir a água do poço comunitário e a
transportei ao ombro, muitas vezes, às escondidas dos guardas das
searas, fui com a minha avó, também pela madrugada, munidos de ancinho,
panal e corda, a recolher nos restolhos a palha solta que depois haveria
de servir para a cama do gado. E algumas vezes, em noites quentes de
Verão, depois da ceia, meu avô me disse: "José, hoje vamos dormir os
dois debaixo da figueira". Havia outras duas figueiras, mas aquela,
certamente por ser a maior, por ser a mais antiga, por ser a de sempre,
era, para toda as pessoas da casa, a figueira.
Mais ou menos por antonomásia, palavra erudita que só muitos anos
depois viria a conhecer e a saber o que significava... No meio da paz
noturna, entre os ramos altos da árvore, uma estrela aparecia-me, e
depois, lentamente, escondia-se por trás de uma folha, e, olhando eu
noutra direção, tal como um rio correndo em silêncio pelo céu côncavo,
surgia a claridade opalescente da Via Láctea, o Caminho de Santiago,
como ainda lhe chamávamos na aldeia.
Enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com
as histórias e os casos que o meu avô ia contando:
lendas, aparições, assombros, episódios singulares, mortes antigas,

zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansável rumor
de memórias que me mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente me
acalentava. Nunca pude saber se ele se calava quando se apercebia de que
eu tinha adormecido, ou se continuava a falar para não deixar em meio a
resposta à pergunta que invariavelmente lhe fazia nas pausas mais
demoradas que ele calculadamente metia no relato: "E depois?". Talvez
repetisse as histórias para si próprio, quer fosse para não as esquecer,
REYNALDO FONSECA
quer fosse para as enriquecer com peripécias novas.
Naquela idade minha e naquele tempo de nós todos, nem será preciso
dizer que eu imaginava que o meu avô Jerónimo era senhor de toda a
ciência do mundo. Quando, à primeira luz da manhã, o canto dos pássaros
me despertava, ele já não estava ali, tinha saído para o campo com os
seus animais, deixando-me a dormir. Então levantava-me, dobrava a manta

e, descalço (na aldeia andei sempre descalço até aos 14 anos), ainda com
palhas agarradas ao cabelo, passava da parte cultivada do quintal para a
outra onde se encontravam as pocilgas, ao lado da casa. Minha avó, já a
pé antes do meu avô, punha-me na frente uma grande tigela de café com
pedaços de pão e perguntava-me se tinha dormido bem. Se eu lhe contava
algum mau sonho nascido das histórias do avô, ela sempre me
tranqüilizava: "Não faças caso, em sonhos não há firmeza".
Pensava então que a minha avó, embora fosse também uma mulher muito
sábia, não alcançava as alturas do meu avô, esse que, deitado debaixo da

figueira, tendo ao lado o neto José, era capaz de pôr o universo em
movimento apenas com duas palavras. Foi só muitos anos depois, quando o
meu avô já se tinha ido deste mundo e eu era um homem feito, que vim a


compreender que a avó, afinal, também acreditava em sonhos. Outra coisa
não poderia significar que, estando ela sentada, uma noite, à porta da
ALPHOSE MUCHA
sua pobre casa, onde então vivia sozinha, a olhar as estrelas maiores e
menores por cima da sua cabeça, tivesse dito estas palavras: "O mundo é

tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer". Não disse medo de morrer,
disse pena de morrer, como se a vida de pesado e contínuo trabalho que
tinha sido a sua estivesse, naquele momento quase final, a receber a
graça de uma suprema e derradeira despedida, a consolação da beleza
revelada.
Estava sentada à porta de uma casa como não creio que tenha
havido alguma outra no mundo porque nela viveu gente capaz de dormir com
porcos como se fossem os seus próprios filhos, gente que tinha pena de
ir-se da vida só porque o mundo era bonito, gente, e este foi o meu avô

Jerónimo, pastor e contador de histórias, que, ao pressentir que a morte
o vinha buscar, foi despedir-se das árvores do seu quintal, uma por
uma, abraçando-se a elas e chorando porque sabia que não as tornaria a
ver."
(POR SARAMAGO)
Imagens e fotos Gooogle

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